ROBETO VIEIRA: UMA ARQUEOLOGIA DO FUTURO
O caráter premonitório e antecipador da obra plástica de Roberto Vieira já era perfeitamente visível no início dos anos 60, quando, estudante de arquitetura e músico, freqüentando a oficina da Escola Guignard, propunha questões apenas latentes na reflexão e na produção artística brasileira de então. São dessa época suas primeiras peças minimalistas, formuladas com uma radicalidade ainda hoje nova, postas como questões espaciais em campo ampliado. Desde, então, trabalhando na contra-mão das práticas artísticas vigentes em Minas, assumiu sua rebeldia, que atrelava com inteligência o ato experimental à conspiração por uma liberdade de pensamento e ação quase sempre incompreendida. Em meados dos anos 70, Roberto daria uma trégua à experimentação radical, para trabalhar dentro da pintura algumas questões mais assimiláveis, tendo por mote a paisagem de Minas, reinventada em cores deslumbrantes, mas que não demoraria a abrir brecha para a abordagem crítica da realidade brasileira; transformando as montanhas em corpos dilacerados, e daí partindo para a construção de caixas, que ele chamou de sacrários, onde a terra, com matéria orgânica e seres vivos, passariam a constituir os elementos de força de novas experiências.
Retoma, então, esse veio experimental, com a radicalidade esperada: reconhece a dinâmica ordenadora da natureza, como espelho a refletir o desejo da humanidade. Atravessa assim sua estrutura como um sistema de arte. Decompõe a própria linguagem da arte, subverte as técnicas e suas especificidades.
Em uma exposição individual no Palácio das Artes, em 1981, toda essa experimentação se coloca em confronto com o próprio sistema da arte. O espantoso arsenal de obras, exibindo poéticas inusitadas, em sua multivariedade de abordagens, tinha como eixo a reabilitação do fato da natureza que se rende ao preceito construtor da cultura. A utilização de galhos de árvores para fazer, como projetos de uma arquitetura selvagem, desenhos de coisas que retomam a uma estrutura pensada, terra-cor empanando objetos, estratificações da natureza coletada e armazenada em caixas, reconstituições de sistemas construtivos da arquitetura tradicional mineira: pau-a-pique, adobe, paus amarrados com embira, argamassa de barro e estrume. Com esses elementos físicos e processuais, retoma questões provindas do minimalismo, aderindo-as a um conceito mais amplo que considera a natureza que antecede a cultura. Mais ainda frutas naturais congeladas sob camadas de tintas industriais, placas de vidro em fusões desconcertantes a decompor o arco-íris, panos costurados em composições de singela geometria; chapas de ferro cortadas e dispostas como entes totêmicos, onde o artista flagrava a ferrugem como a tinta da vida, altares religiosos para rituais assistidos por máquinas incomuns.
O risco (desenho) desse processo criador sedimenta um comportamento absolutamente contemporâneo. O risco que (se) corre, é não se saber como deter Pandora, mas no caso de Roberto Vieira, não se quer deter nada, paga-se – e muito – para ver.
E o que se vê hoje em sua obra é uma reformulação, na inversão do espelho, do material que se (es)colhe para a discussão sobre arte. As obras que vem realizando, hoje, confirmam o desatino de sua radicalidade, o destino radial de suas invenções. Dentro da obra corre um discurso tenso, que ele introjetou a partir de uma discussão à luz de Barthes, e que revela uma preocupação maior com a vida do que com a obra de arte em si. A obsessiva coleta, agora, tem o foco nos detritos da indústria e dos resíduos da tecnologia de ponta, a serem justapostos, rearticulados, acoplados infinitamente. A esses objetos, dejetos abjetos do que restou de um momento iluminado de sofisticado uso, e que se deteriora muito mais rapidamente, ajuntam-se restos do consumo cotidiano, objetos perdidos que ganham novas dimensões quando pedem parte de sua identidade, ao serem literalmente cobertos com camadas de pigmentos de terra resinados. Chips, baterias, peças de computador, barbeadores, garrafas de plástico e uma infinidade de coisas descartáveis, pervertidas, rejeitadas ao final do uso, matérias tipicamente urbanas da chamada cultura vertical aderem-se a uma nova realidade proposta pela arte, antes domínio da natureza, do pensamento e da língua – a cultura horizontal. Querem a todo custo sobreviver ao assédio do tempo, saltando para o espaço próprio dos seres naturais.
Roberto guarda-os dentro das caixas, em concentrações densas, carregadas de uma beleza trágica. Ou as articula aleatoriamente em seqüência linear, transformando-as em estranhos bichos, que podem se fragmentar novamente sem perder a identidade. Essas peças, que Roberto denomina de articulabiles, passam a viver nos dois campos de cultura, anfíbios, achados de uma ambígua arqueologia do futuro, que tudo dizem da vida, sem perderem a perspectiva da arte.
Márcio Sampaio
Texto construído a partir de depoimento do artista sobre o seu trabalho, em Belo Horizonte, 2001.